sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

A casa dos Guardanapos de Pano (nao acabado)

Um andar. Um andar so. Nao, mentira minha, um andar e meio, contando aquela escada vazada e sem corrimao que levava pro quarto do tio mais novo. Aquele comodo sempre foi o mais misterioso pra mim, tinha um certo algo de quarto proibido no ar.

A entrada era pela garagem, a direita da porta, os janeloes que levavam ao patio, ao grande patio. A esquerda, um hall que levava a Sala de TV e a Sala de Jantar. Lembro-me pouco da Sala de TV: A disposicao dos moveis, o sofa que fazia frente a lareira e a cadeira do avo, o lugar nobre da sala, fazendo frente a tv. Lembro-me pouco da Sala de TV, mas lembro-me perfeitamente da sensasao que tinha quando brincava de caminhar no encosto do sofa; lembro-me direitinho da visao dos meus pes e do esforco para manter o equilibrio; lembro-me da adrenalina de pensar que o sofa poderia virar e da graca que achava do medo que a avo tinha de que eu caisse.



Cruzando a sala de jantar se chegava a copa, era uma casa do tempo em que as casas ainda tinham copa e, passada a copa, entravasse na cozinha, que era fina e comprida. Sobre a copa nao tenho muito a dizer, so que ela tinha gosto de pao com mateiga e mel. Pao com manteiga e mel que a Teresa fazia. Tereza era a negra que tinha sido criada pela minha bisa enquanto minha vo, como menina de sociedade, tinha sido criada em um internato. Depois de velha, Tereza tinha ajudado a minha vo a criar seus filhos e, depois de ainda mais velha, estava ajudando a filha da minha vo a me criar; A cozinha era interessante, bem fina e bem comprida tinha um monte de fogoes que nem me lembro bem. O que me lembro bem da cozinha era que tinha uns canos, canos compridos e de comprimentos diferentes na parede a direita da porta, parecia uma miniatura daqueles orgaos de igreja. Eram as campainhas. Cada comodo tinha a sua campainha.

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E tudo na asa me era absolutamente natural. Fantasticamente natural. A mesa com patas de leão, o cesto de ovos em forma de galinha no comedor, o orgão na cozinha que servia como campainha. O avô. A avó.

Passou-se o tempo. Primeiro, foi-se embora a casa: grande, imponente e acolhedora no alto daquele morro que me doía as pernas de subir; mas tarde, já em um apartamento, também alto e em um morro, veio o computador. Computador melhor que o da minha casa. O computador melhor que eu já tinha visto. O computador que ficava no escritório do avô. E, depois, foi-se embora o avô. Na sequência, foi-se embora o apartamento e, com ele, a biblioteca do avô.

Idos a casa, o avô, o apartamento, a biblioteca, ficou-me a avó. Me pareço muito com a avó. Dela, aprendi a herdar o paladar. Se da negra, que depois de ainda mais velha
tinha ajudado a a filha da avó a me criar, aprendi o gosto por pão com manteiga e mel, da avó, guardei o gosto por pêras e sopas. Gosto de sopas independente da temperatura, mesmo no verão, gosto de sopas.

E tudo na casa me era absolutamente natural. Fantasticamente natural. Levou-me bastante tempo: foi-se embora a casa, a negra, o avô, o apartamento, a biblioteca e o computador. E foi preciso que ficasse só a avó, as pêras e as sopas, para que todo o universo que conheci dentro das paredes daquela casa me parecesse menos natural. Era fantástica, eu mal sabia.

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Notas sobre a avó: a avó tem cabelos curtos, usa-os claros, quase loiros. Hoje, pintados. Tem sempre as unhas feitas, usa-as claras, sempre discretas. É uma pessoa curiosa a avó, sempre vistosa, ao mesmo tempo, muito discreta.

Uma vez fui com a irmã ao cinema, era um filme sobre a rainha da Inglaterra, mas bem que poderia ser um filme sobre a minha avó. Ao sair, comentamos encantadas, concluímos que eramos netas da rainha da Inglaterra.

Essa é a avó. Clara, nobre, filha de aristocratas do passado, ela e os guardanapos de pano. Mas, assim como as pêras e as sopas, de uma simplicidade encatadora. É doce, é suave, é apaixonante.

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Enquanto escrevo a avó, já com cabelos brancos disfarçados pela tinta, dá aula. Fala de ciência de filosofia a uma turma em uma faculdade. A avó é psicóloga e filósofa desde o tempo em que, aqui por estes trópicos, as mulheres nem trabalhavam, nem pensavam, nem ensinavam fora das paredes de suas casas. Mas a avó já pensava, já bem longe de casa, a avó pensava.

E esse é o fantástico por trás do normal. O fantástico que me levou anos para descobrir. Imaginem vocês que, tendo nascida neta da rainha da Inglaterra que dá aulas de filosofia eu, por tanto tempo, só me ative ao leão que se escondia embaixo da mesa de jantar.

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